Uma faxina no Congresso
Com a PEC da Blindagem, a maioria dos deputados federais confessou que só trabalha pra si e ainda quer imunidade para seus atos criminosos.
Que há um embate entre o governo federal, do presidente Lula, e o Congresso Nacional, já sabemos. Faz parte do desafio de assegurar governabilidade através de costuras institucionais e que, muitas vezes, revela como o executivo é tão facilmente passado pra trás com as falsas promessas de corredor feitas pelos presidentes da câmara e do senado. Arranjos ministeriais e de comissões não duram muito tempo, pois os partidos de direita, no fisiologista centrão, querem tudo nos seus próprios termos. Prova disso é a atuação do União Brasil e o Progressistas (nome atual do partido anti-progressista PP) que, ao pretenderem uma superfederação, adiantaram seu desembarque completo do Governo Lula após a revelação de que as investigações da Operação Carbono Oculto apontariam para uma relação entre Antonio Rueda, presidente do União Brasil, e esquemas do PCC. Embora a operação seja da Polícia Federal, Rueda, que sofre daquela enfermidade bolsonarista que não compreende a separação entre poderes e jurisdições no Brasil, acusou o Governo Lula de atacar sua imagem, e cobrou a retirada de todos os filiados do União Brasil de cargos do governo federal.
O ultimato de Rueda é apenas mais uma das ações desesperadas da extrema-direita e do centrão que miram as eleições de 2026. A fragilidade da tática de governabilidade via acordos com partidos claramente opostos ideologicamente ao PT, a Lula, e a qualquer pauta verdadeiramente alinhada com a classe trabalhadora, é tanta que não podemos nem ao mesmo afirmar que tal governabilidade já existiu. Ela está sempre em crise, pois esses aliados atacam e sabotam o governo por fora e por dentro.
Com o trauma que parte da esquerda que estava no governo em 2013 ainda tem de rua, de convocar e mobilizar com vontade, parecia que o único caminho seguiria este de ceder às chantagens da direita, com um Congresso de maioria absoluta anti-povo, e tentar garantir a reeleição de Lula ano que vem, para que possamos repetir a mesma dança, talvez mais frágil ainda, no governo Lula 4.
Mas eis que a mesma direita que ataca o Brasil, chega com a solução.
Tiros no pé são bem-vindos
Eduardo Bolsonaro está fazendo escola. Com certeza, ele contribuiu para o crescimento da extrema-direita no Brasil. Mas me alegra ver que, por ser mais fiel a si mesmo que às suas crenças políticas, tem ensinado aos seus amigos, sobretudo no seu partido PL (cujo “liberal” da sigla também não vale nada), a pensarem em si acima de todos, acima do Brasil. As manifestações do seu campo no dia 7 de setembro foram motivo de vergonha internacional. O desespero para que Trump salve seu pai, para que salve a família toda, em detrimento dos interesses imediatos de lucro das elites que tanto fomentaram o bolsonarismo, demonstrou que a permanência dos Bolsonaros no poder nunca foi questão de habilidade, mas sim de sorte, coincidência e amiguismo. A família foi útil para o mercado financeiro, o agronegócio, as mineradoras, e seguirá sendo enquanto conseguirem abocanhar muitos assentos no Congresso Nacional, nas assembleias dos estados e no domínio de prefeituras. Mas, quando esquecem que ocupam esses espaços para garantir, antes e acima de tudo, o lucro dos seus parceiros de classe, começam a meter os pés pelas mãos e vão perdendo credibilidade.
Não irei discorrer sobre os efeitos do apoio de Eduardo ao tarifaço e do seu empenho em seguir nos Estados Unidos para se proteger de uma futura prisão enquanto garante seu salário de deputado federal no Brasil, pois é um tema já amplamente analisado por muitos colegas e companheiros. Porém, há de notar que o julgamento dos golpistas no STF e a sede por anistia acelerou processos de aproximação e ruptura dentro dos partidos fisiologistas e do Congresso Nacional. A chantagem que Hugo Motta e Davi Alcolumbre promovem no cotidiano, segurando pautas de interesse não somente de Lula, mas principalmente do povo brasileiro, como a isenção de IR abaixo de 5 mil reais ou a redução da jornada de trabalho, está cada dia mais evidente. Não votam o que precisamos, mas pautam com urgência tudo que lhes interessa diretamente. O PL da Devastação deixou isso claro, mas a PEC da Blindagem (ou da Bandidagem, como apelidado pelo povo) forçou tanto a barra que a resposta veio de fora das instituições.
A votação dessa PEC, por tão absurda que é, agiu como panela de pressão. Temos deputados (desde a União Brasil ao PSB) postando vídeos vergonhosos de desculpas pelo seu voto, como se tivessem apenas se deixado levar. Temos a militância filiada ao PT cobrando posicionamento do partido sobre os deputados petistas que também votaram a favor e tendo que enfrentar a realidade de uma bancada que muitas vezes é liberada para votar contra o próprio governo. Temos eleitores do PP, da União Brasil, do PL, dos Republicanos, indignados com o voto de seus deputados e, quem sabe, refletindo sobre quem eles são e o que realmente defendem.
A extrema-direita parece ter se esquecido que o estopim para o seu crescimento nos últimos anos não foi o “conservadorismo do brasileiro". Sim, podemos argumentar sobre o crescimento da intolerância e a normalização do racismo, LGBTfobia e tudo mais. Mas a extrema-direita pôde crescer com isso e fomentar mais extremismo conservador porque, lá atrás, se pintou de “anti-sistêmica" e anti-corrupção. Agora, até Sergio Moro, que antes era tratado como o herói brasileiro contra toda corrupção, relativiza a PEC da Blindagem, falando de melhorar o texto, e é devidamente achincalhado por isso.
A repercussão negativa imediata dos votos na Câmara de Deputados fizeram até que o Senado se reorganizasse sobre a pauta. Há discursos sobre terem sido pegos de surpresa por Motta, por exemplo, o que, francamente, dá uma sensação gostosa de “fogo no parquinho". Desde o fim da semana passada, já haviam rumores que senadores já se reorganizavam para derrotar a PEC, com posição de rejeição do próprio relator, do MDB.
Felizmente, o povo não se contentou em esperar e pagar para ver. Sabemos muito bem como projetos são afundados pelos deputados e senadores quando a opinião popular é negativa, apenas para serem ressuscitados com roupagem mais “moderada" logo depois. Nessas horas, retiram alguns pontos mais polêmicos, esperam o assunto morrer, e conseguem passar seus pontos principais com folga.
Daí a importância das mobilizações de 21 de setembro. Os atos foram claramente de esquerda e pautados numa visão de Brasil Soberano, que não se dobra a Trump e que cobra o mínimo de decência dos seus parlamentares. O tom foi de indignação, mas também de festa. Talvez tenha sido essa combinação a melhor sacada de todas, pois comprova que a esquerda tem a capacidade de trabalhar um vasto leque de emoções para mobilizar. Oras, se o povo está cansado e frustrado, isso também inibe a formação de massas nas ruas. Para que marchar do ponto A ao B, voltar pra casa, e tudo continuar da mesma forma? E se pudermos fazer isso também celebrando nossa força vital, as vitórias garantidas até agora, e afirmando que não iremos recuar diante dos ataques da direita? E se - no país dos memes - fizermos isso também tirando sarro dos Bolsonaros? Parece uma boa receita e vimos o resultado disso no domingo.
A grande imprensa que mal anunciava os atos do campo progressista não conseguiu ignorar de todo a multidão nas grandes e médias cidades. Brasília, que não via uma marcha progressista tomar todas as faixas de trânsito em frente ao Museu Nacional há muitos anos, mostrou que ainda existe luta nas ruas da capital brasileira - no mesmo lugar onde golpistas queimaram banheiros químicos durante o julgamento da cúpula do golpe há poucos dias.
Os atos também foram importantes - espero eu - para os traumatizados de Junho de 2013. Aquela galera que odeia rua, tem medo de rua, acha que se a esquerda for pra rua, a direita vai pra rua - como se a direita não tivesse se tornado quase que dona da rua nos últimos anos. Vivem um delírio pós-traumático desmobilizador ao ponto de entregarem toda esperança de atuação política nas mãos de algum senador de direita que fará a coisa correta ou que respeitará uma aliança com Lula. Essa mesma gente que depois vem falar de campanha eleitoral, mas perdeu o contato com a mobilização do dia a dia. Já escrevi sobre isso e creio que estamos mais próximos de construir um antídoto a essa lógica derrotista de fragilidade institucional que habita, sobretudo, alguns círculos da militância de base lulista.
O bom é que Lula tem se lembrado que mobilização faz bem pro seu governo também. Quando a sua tática de governabilidade falha, ele precisa mostrar que suas pautas têm apoio do povo.
Ainda falta convocatória por parte do presidente, mas também mostramos que somos capazes de nos auto-convocar e sem aquela enrolação burocrática de agendar ato para daqui três semanas. Agora que comprovaram que é possível fazer ato com estrutura para shows de figuras como Caetano, Gil, Chico Buarque, Chico César, Djavan e Daniela Mercury, com apenas poucos dias de planejamento, está claro que isso de agendar ato para muito depois do fato sempre foi auto-sabotagem.
E agora?
A PEC da Blindagem nos ofereceu uma lista belíssima, com grande valor estratégico para as eleições de 2026 também. Ora, se o nosso problema é que o Congresso não deixa Lula avançar com pautas populares, se as alianças amplas de seu governo nos deixam reféns de ministérios de direita e afins, é preciso promover uma grande faxina no Congresso Nacional. Já afirmamos que precisamos de um Congresso do Povo (escrevi sobre isso aqui), mas como fazer isso acontecer?
De um lado, sabemos que precisamos eleger mais figuras comprometidas de esquerda. Do outro, sabemos que há pouca margem eleitoral para essas figuras. Precisamos então abrir caminho.
Tenho refletido bastante sobre esses métodos, dialogado com companheiras de militância sobre isso e pensado no tipo de estrutura que precisamos levantar para não somente eleger figuras de esquerda, mas também - necessariamente - deseleger figuras de direita. A impopularidade da PEC da Blindagem até entre eleitores conservadores nos permite apontar claramente que figuras como Nikolas Ferreira estão ali apenas para servir seus interesses próprios (e ele mesmo admitiu isso, que querem ser blindados). Quando essas figuras são puxadores de voto, que aumentam suas bancadas partidárias, elas se tornam ainda mais perigosas.
Por isso, esse varal aqui com imagens dos deputados que votaram pela PEC da Blindagem me deixou muito feliz:
Já imagino um 2026 em que o povo, por iniciativa própria, porém munidos de conhecimento e estratégia sobre os principais inimigos que temos hoje no Congresso, espalhe o rosto e nome dessas pessoas ao lado de suas principais violações. Essas figuras têm muito dinheiro e espaço para fazer sua campanha, mas podemos fazer sua contra-campanha, expondo suas ligações, suas falas, suas posições.
Para cada voto que ganharmos para a esquerda legislativa ano que vem, precisamos arrancar dois ou três da direita. Se fizermos isso com puxadores de voto, de forma estratégica em cada estado, o efeito será multiplicador.
Intervenções artísticas e populares que nomeiam e ilustram esses traidores são muito bem-vindas, explicando bem que cada deputado que votou a favor da PEC da Blindagem votou para que possam cometer crimes - pessoais ou políticos - sem risco de serem punidos.
Ao tentarem poupar Eduardo e Jair Bolsonaro, com a blindagem e anistia, eles revelam que se enxergam mais nessas figuras do que na classe política honrada que luta pela soberania ecológica e econômica do Brasil nas condições insalubres da Câmara e do Senado. Essa linha divisória é central para a possibilidade de avançar políticas democráticas no Brasil e, por isso, precisa ser exposta por todos os cantos hoje, antes e depois das eleições.
Ps: Lembram da imagem de um Brasil dividido na esplanada no golpe parlamentar contra a Dilma?
Pois o jogo virou: