O medo das ruas
Entre os sintomas mais mórbidos, Junho de 2013 se destaca como um trauma mal resolvido do passado recente da esquerda
Muitos anos atrás, quando li o livro 1 de O Capital pela primeira vez, o debate que mais me chamou a atenção não foi o da mercadoria ou da propriedade, mas o que corresponde à duração do dia de trabalho. Nascida em um país onde a escala 6x1 é tratada como normal, fui entender outros arranjos e limites de horas semanais quando morava no Canadá. Como militante ecossocialista, logo aprendi que a redução da jornada semanal é também uma pauta de transição ecológica. O tempo é o eixo central de nossas grandes batalhas: o tempo que é nosso, o tempo que vendemos, o que tempo que nos é roubado, o tempo que precisamos recuperar. Por isso, em um momento onde se reivindica a semana de trabalho de 4 dias no mundo afora, me parece incrível que a demanda pelo fim da escala 6x1 assuste gente de esquerda no Brasil.
Que a direita tomaria a tribuna para defender a exploração contínua não nos surpreende. O que segue espantando é um certo medo que certa esquerda tem de mobilizações que tem cheiro de pauta de esquerda, mas não nascem controladinhas e formatadas pelas organizações de esquerda mais tradicionais. E é aqui que nasce um trauma de Junho de 2013 que nos persegue até hoje.
Passei um bom tempo pesquisando Junho, o Sintomas Mórbidos é um livro nascido dessa pesquisa. Já fiz vídeo, podcast, entrevista - enfim, muita coisa - e, se pudesse, nunca mais tocaria no tema. É cansativo o ciclo do medo de Junho de 2013 que empurra os pesquisadores a terem que repetir os mesmo argumentos, afinal ouvimos também o mesmos argumentos do lado de lá: ovo da serpente, cooptação da direita, esquerda abriu brecha pra direita, nascimento do MBL, etc etc etc. Por isso vou voltar à frase anterior com o intuito de desmembrar a falsa lógica imposta: “medo que certa esquerda tem de mobilizações que tem cheiro de pauta de esquerda, mas não nascem controladinhas e formatadas pelas organizações de esquerda mais tradicionais”. Em 2025, irei retomar a atualização da análise do livro, e me ajuda bastante pensar sobre essa ansiedade da esquerda com o que não pode ser totalmente controlado do começo ao fim.
Junho não nasceu em junho de 2013. As erupções do meio do ano seguiam um acúmulo de mobilizações diversas do último período, seja por tarifas de transporte, seja greves trabalhistas. Junho também age como um marco conjuntural na crise de representatividade da época. Numa diluição confusa entre centro-esquerda e centro-direita - a própria vitória da consolidação de um centrão (legislativo e não-institucional também) - o sentimento de não-identificação era crescente, ainda mais quando se podia culpar um elemento vago, de significante esvaziado, como a corrupção, como raiz de nossos problemas. O tema da corrupção segue muito mal resolvido no Brasil e a esquerda em si escorrega nas tentativas de reivindicar a luta contra a corrupção como nossa pauta. Assim, a corrupção apareceu como significante ideal em Junho, pois tinha a capacidade de captar a indignação que nasce com cheiro de esquerda (por transporte público de qualidade e tarifa zero), e a raiva que se alimenta de uma pauta de esquerda (contra a violência policial), e se impor como uma raiz generalizada das crises do país, se tornando assim algo que atrairia pessoas que não se importavam com os 20 centavos, mas foram atraídas às ruas como sujeitos políticos mal disputados por uma esquerda em crise. A direita soube aproveitar esse significante e a crise para se impor, mas até hoje, muitos sujeitos importantes de esquerda, fazem uma leitura parcial de Junho de 2013 como monstro: uma grande armadilha da direita através de mobilizações supostamente espontâneas.
Desde então, toda vez que parece que vamos juntar mais gente na rua, em torno de pautas progressistas, mas o chamado não vem diretamente das maiores organizações de esquerda do Brasil, aparece o alerta de “tome cuidado ou teremos outro Junho". Embora, assim que Lula fora eleito em 2022, o discurso anti-ruas e de “deixar Lula governar em paz”, tornara-se uma grande re-edição do “não é hora de criticar" que ouvimos desde sempre, esse medo de Junho até esteve presente quando estávamos sob o governo Bolsonaro. É como se a reinvindicação de trabalhadores de aplicativo pudesse ser cooptada facilmente pela direita, pois muitos dos trabalhadores não se identificam com a esquerda formal. É como se a pauta da defesa do direito ao aborto nunca pudesse ser levantada, pois o eleitoral brasileiro é supostamente tão conservador, que só voltaremos a ser eleitos se nos tornarmos uma “esquerda conservadora” capaz de agradá-lo.
Assim, esse debate vem à tona novamente, torto novamente, quando a pauta tão decididamente de esquerda do fim da escala 6x1 toma proporcionais nacionais. Se ao cobrarmos do governo, somos acusados de fazer o jogo da direita ou enfraquecer o governo diante de uma constante ameaça de golpe, uma explosão aparentemente inesperada em torno dessa pauta trabalhista gera medo de algo que não se pode controlar, que pode ajudar a direita a derrubar um governo do PT novamente.
O problema é que a ideia de que eventos históricos se repetem igualmente é apenas ideologia e nada corresponde à realidade em termos organizativos e conjunturais. Junho de 2013 foi ápice de uma mudança de conjuntura e, como evento, alterou a conjuntura de forma que ele não pode se reproduzir outra vez. Impactados pelo golpe, pelo governo Bolsonaro, pela prisão de Lula e seu retorno à presidência, há de se supor que aprendemos alguma coisa e que, a direita de hoje é uma adversária bem mais complexa e consolidada, que a de antes. É uma direita com capacidade de mobilização própria, seja para ganhos eleitorais, seja para acampamentos em quarteis. Temos uma direita que não precisa pegar carona numa mobilização popular e esvaziá-la, pelo contrário, pois vivemos uma conjuntura em que a direita pauta a esquerda muito mais que a esquerda pauta a direita. Vivemos em retaguarda, reagindo a ataques no Congresso, na imprensa, e ameaças golpistas cujos desdobramentos testemunhamos atentamente nas últimas semanas.
Para tanto, o crescimento da luta pelo fim da escala 6x1 deveria menos assustar e mais contagiar. Há uma possibilidade real de acompanhar a liderança de figuras sindicais, de movimentos como o VAT, de parlamentares envolvidas na causa trabalhista, para desmistificar de vez os riscos econômicos da redução da jornada e de tornar uma causa tradicionalmente de esquerda também institucionalmente de esquerda. O que significa aprender o nosso principal erro de Junho de 2013: voltarmos a pautar em vez de sermos pautados.
Em 2013, parte da esquerda, assustada com o sentimento anti-esquerda, se ressentiu. Desde então, vivemos chateados com a classe trabalhadora e média que não se identifica com a esquerda, ao mesmo tempo que muitos argumentam que devemos abandonar certas pautas de esquerda (especialmente essas que eles chamam de identitárias e nós chamamos de anti-opressão), para enfim sermos amados por esses que nos rejeitam. É paradoxal e corresponde à continuação da nossa crise de práxis. É exatamente o tipo de coisa que pode criar monstros onde não existem e que poderemos culpar depois na história. Se temos uma pauta tão verdadeiramente nossa e não a abraçamos - pior, demonstramos medo dela e de sua capacidade mobilizadora - mantemos sempre um vazio, uma brecha que pode ser utilizada sim pela direita, que se demonstra astuta em cooptar até mesmo pautas de desastres climáticos se isso possibilitar sua reeleição. Isso não é culpa da capacidade mobilizadora da pauta e sim, primariamente, de uma renúncia coletiva à luta popular en prol da preservação do poder institucional.
É preciso reconhecer que quando o poder institucional é frágil, temporário e duramente ameaçado - como é em nossa conjuntura atual - é possível garanti-lo com mais mobilização, desde que haja reconhecimento da luta e da demanda popular como poder próprio e não de instrumentalização. A noção de que mobilização popular é mais ameaça a um governo progressista que as amarras do centrão e da direita nas instituições é perigosamente reacionária e fatalista. Com as devidas costuras e convocatórias, é possível demonstrar para o povo que certas pautas como o fim da escala 6x1, ou a tarifa zero, beneficiam toda a classe trabalhadora, independente de como parte dela vota. Se há interesse genuíno em reconquistar os trabalhadores do Brasil para a esquerda, me parece mais vantajoso fazê-lo com uma pauta de benefício comum para a classe - o que exige múltiplos formatos de mobilização - do que essa lógica recente de que devemos silenciar sobre aborto e pautas LGBTQIA+ para, supostamente, agradarmos à população capturada pelo conservadorismo.
Sabrina amei seu texto e me veio uma reflexão no intuito de debatermos ideias.
Recentemente estive em uma aula sua, em formato on-line, acredito que foi no Canadá, não me recordo direito, mas um dos temas trabalhados foi a transição justa. Lembro de fazer uma provocação no mesmo sentido, mas gostaria de trazê-la aqui novamente e com mais fôlego.
Você comenta sobre esse medo do junho de 2013 e sua capacidade paralisante para a esquerda e os governos de esquerda. Como a direita atual está mais complexa e ativa, inclusive levantando suas próprias pautas e mobilizações.
Penso, olhando para a conjuntura global, que estamos em um cenário fértil para uma ruptura. Estamos presenciando um levante global da direita. Pautas mais conservadoras ganhando força mesmo entre os jovens, que defendem sem saber sobre: o sionismo, a escala 6X1 ou até mesmo repetem absurdos sobre terraplanismo e a inexistência do aquecimento global. Em outras palavras, vivemos hoje um retrocesso, penso eu que, reflexo da inação da esquerda em tempos de necessária mobilização.
O atual governo do PT, e abro um leve parênteses aqui, considero-o social democrata, quase numa formação Centrão pra centro-direita, tem minado pautas de esquerda e de transição. Os leilões do fim do mundo, dos bolsões de petróleo na foz Amazônia, a não revogação do novo ensino médio que desmonta a já frágil educação pública no país, o “novo” calabouço fiscal, são apenas alguns exemplos de políticas gestadas no governo PT. Podem não ter sido sob ele propostas, mas com ele seguem a todo vapor.
Isso tem levado a uma descrença pública da esquerda. Talvez por uma falha nossa de apostar publicamente que “as coisas vão melhorar agora com a eleição do PT” na época pós-Bolsonaro apelando por um PT do passado em outro cenário econômico, social e climático. Mas, a inação de esquerda também contribui para isso. As poucas vozes que fazem frente a essas políticas viram subsumidas na onda conservadora, e aquelas que começam a ser populares e levantar pautas como o fim da escala 6X1 são chamadas de identitárias e atacadas pela própria esquerda.
Existe sim uma resistência da direita devida sua expressiva ocupação no congresso, mas a esquerda que está presente também se faz resistente ou conservadora quando deveria ser mais radical.
Vejo um “futuro sombrio” caso esse cenário siga do jeito que está, e isso já se reflete nas eleições para prefeitos quando em sua maioria foram candidatos de direita, inclusive apoiados pelo ex presidente, que foram eleitos em vantagem esmagadora de eleitores.
Como comecei esse comentário dizendo, penso que estamos num momento de ruptura. Só que essa ruptura pode ser nossa e com ela nós movermos para a superação, ou pode ser cooptada pela direita e rumarmos para um futuro ainda mais conservador, rompendo com a atual social-democracia.
Sabrina, muito bom seu texto!
Uma dica, para quem tem certa perda visual é um pouco difícil ler a fonte branca nesse tom escuro da tela, seria ótimo se fosse possível mudar, porém, o substack não permite, talvez você consiga avaliar uma mudança de cores a fim de melhorar a leitura. <3