O terceiro poder está em jogo
Na dança entre os três poderes, o povo brasileiro faz uma pergunta central da democracia: a quem serve o Congresso Nacional?
A luta de classes é viva no Brasil. Nosso país tem a maior quantidade de dólar-milionários da América Latina: são 433 mil pessoas cuja riqueza ultrapassa mais de um milhão de dólares estadunidenses (fortuna de ao menos 5,5 milhões de dólares). Somos também o país mais desigual em um ranking de 56 países e nossa desigualdade é persistente. Mesmo com grandes esforços de desenvolvimento e crescimento econômico, assim como políticas sociais que, em conjunto, buscaram amenizar a miséria e pobreza extrema no Brasil, a desigualdade é visível e característica da nossa realidade. Somos tão desiguais que até nossa classe média parecer estar no topo da pirâmide, o que torna posicionamentos voltados ao rendimento mensal daqueles no “1% mais rico do país” um tanto distorcidos. O rendimento médio mensal real domiciliar per capita em 2024 do 1% mais rico do Brasil foi de R$ 21.767 (segundo a Pnad contínua). A cifra faz crer que o rendimento da chamada classe média alta (que ganharia entre 10 e 20 salários mínimos mensais) a torna rica e distorce a própria mentalidade de quem possui essa renda e atividades mais vantajosas financeiramente. Num país com tanta miséria, é fácil que pequenos empresários, profissionais liberais, empregados em posição de chefia e servidores públicos se enxerguem como ricos. É fácil também que a imensa maioria da população, esmagada por salários baixos e incompatíveis com o crescente custo de vida enxerguem na classe média privilegiada seus inimigos de classe. Enquanto isso, o grandes multimilionários e os bilionários brasileiros, cujo rendimento não é medido em salários mensais mas em lucro, dividendos e acúmulo de riqueza e patrimônio para além do que o povo pode imaginar, passam batidos. Quando notados, sua riqueza obscena é justificada pela ilusão de que sem eles não há desenvolvimento, não há emprego, não há produção.
Aí mora a armadilha do capital: faz o trabalhador crer que a riqueza provém de quem compra a sua força de trabalho e não do trabalho em si.
Num cálculo de 1% um pouco mais adequado, considerando patrimônio acumulado (fruto de acúmulo de riquezas), e não rendimento mensal (que pode facilmente ser gasto entre despesas familiares), a FGV considera que os 1% mais ricos brasileiros em termos de patrimônio acumularam R$ 4,6 milhões por pessoa. Se olharmos para uma porcentagem ainda mais adequada para identificar o real topo de uma das pirâmides mais desiguais do mundo, no 0,1% dos mais ricos, o patrimônio aumenta para R$ 26,2 milhões por pessoa. Esse patrimônio consiste em imóveis (rurais e urbanos), ações, automóveis e outros ativos financeiros e empresariais.
Sob tal contexto de desigualdade, a justiça tributária emerge com força e urgência. O sistema tributário brasileiro é conhecido por ser regressivo e por isentar o verdadeiros ricos - multimilionários e bilionários donos de patrimônios gigantescos - de obrigações fiscais adequadas. O resultado é uma luta eterna por arrecadações insuficientes de impostos para financiar plenamente políticas sociais e serviços públicos de qualidade, os quais diminuem o custo de vida e facilitam a existência da imensa maioria dos brasileiros - até mesmo da classe média e da classe média alta que se julga ou é julgada, erroneamente, mais próxima dos grandes ricos. O Brasil é tão desigual que em um sistema de justiça tributária, não seriam os 99% da população que se beneficiariam, mas os 99,9%.
É por isso que o movimento para uma reforma tributária progressiva, que ao meu ver vai além da isenção de IR até R$ 5 mil ou a criação de um imposto para os que ganham mais de R$ 50 mil, é potencialmente uma pauta estrondosamente unificadora. A reformulação da tabela de Imposto de Renda como um todo é urgente, assim como a implementação de impostos específicos para as grandes fortunas. O governo Lula está ciente disso e tem comprado essa briga, mas não sem soluços, equívocos, tropeços e o tradicional cortejo da governabilidade que trava pautas populares sempre que contrariam os interesses do 0,01%, da elite brasileira.
Para quem trabalha o Congresso Nacional?
Assim que movimentações orgânicas sobre a desigualdade no Brasil, incluindo sobre a necessidade de justiça fiscal, e sobre ações de deputados e senadores que agem para proteger grandes empresários em detrimento do bolso das classes trabalhadora e de pequenos e médios empresários, como o caso da conta de luz, cresceram nas redes sociais, a grande imprensa fez o que sempre faz: tenta manipular a indignação popular, domar as nossas vontades políticas e podar a capacidade de pressionar o Congresso Nacional para que trabalhe para o povo em vez de contra ele.
Não vou entrar a fundo nos méritos ou deméritos do governo Lula, que em seu terceiro mandato apresenta uma combinação de maior ousadia em certas pautas, enquanto navega sua situação de refém do Centrão quase que através de uma Síndrome de Estocolmo: ora enfrenta, ora agradece por trabalhem juntos. A dança da governabilidade lulista é altamente estudada e analisada, apresentando poucos sinais de evolução desde o primeiro governo federal petista. Os chamados para voltar à base e garantir governabilidade com o povo ecoam em certos momentos, mas, no geral, são subordinados à lógica geral de tentativa de conciliação institucional para poder governar. Historicamente, isso levou a altercações entre o executivo, o legislativo e o judiciário, mas também a alinhamentos, pois não devemos nos esquecer o quanto empresários e banqueiros têm acesso ao Palácio do Planalto, mesmo em governos ditos progressistas e populares. É essa a democracia limitada liberal e burguesa do nosso país, o que torna o conjunto dos três poderes alérgico à reformas estruturais. São essas reformas que alterariam a condições da disputa de poder entre as classes, desafogando orçamentos, permitindo outras formas de organização social, redistribuindo não somente renda, mas principalmente propriedade. As sonhadas reformas agrária, urbana, tributária, e uma trabalhista que pudesse findar a exploração da jornada 6x1 seguem no desejo do povo, mas são constantemente barradas pelos homens de terno que nos dizem que não é hora, ou que nunca será hora.
Assim, se faz necessário comprar mesmo a briga de que há algo podre dentro do Congresso Nacional e que é ali que devemos focar nossas energias desde agora. Não se trata de forma alguma de delírios como os insinuados pela grande imprensa de que o povo ou o executivo desejariam podar os poderes do Congresso (ou até mesmo fechá-lo). Isso é papo mais condizente com os verde-amarelos do 8 de janeiro que de fato invadiram e vandalizaram o espaço do Congresso com o intuito de aplicar um golpe antidemocrático. O que vemos em mobilização do discurso de classe hoje é inteiramente diferente. Há um respeito pela necessidade do equilíbrio entre os três poderes, mas há também o questionamento dos interesses que habitam esses poderes. A quem serve este Congresso Nacional, eleito em 2022, que busca aumentar a quantidade de deputados assim como a conta de luz? Um Congresso que limita o orçamento público para pastas fundamentais ao bem-estar e desenvolvimento do povo brasileiro, enquanto libera orçamento de ementas para os deputados aliados a Hugo Motta. Um Congresso que promove o PL da Devastação, se unindo inclusive a parlamentares governistas, para facilitar o lucro do agronegócio, mineradoras, empreiteiras e concessionárias no mesmo ano em que o Brasil se pinta de liderança sustentável na COP30. Este Congresso Nacional não está à serviço do povo, e se não está, a função social e política da população é cumprida pressionando, cobrando, protestando e demandando que pautas populares sejam levadas à sério. No centro de todas essas está a luta contra a desigualdade, pois ela manifesta diretamente o sentimento do antagonismo entre as classes exploradas e a classe que explora.
Nessa disputa, é fácil ver que a atual composição do Congresso Nacional não somente representa os 0,01% mais ricos do Brasil, como há membros dessa elite ali dentro. O estado não negocia os interesses da burguesia, mas é cada dia mais a burguesia em si. Enquanto nos Estados Unidos presenciamos as consequências da eleição das grandes elites diretamente ao executivo, no Brasil estamos no impasse onde, embora existam classes privilegiadas operando dentro do executivo, no Congresso moram alguns dos nossos multimilionários de verdade. De acordo com ferramenta do portal Congresso em Foco, enquanto a maioria dos parlamentares possuem patrimônio entre 1 e 2 milhões de reais, 24 parlamentares acumulam mais de 10 milhões de reais. O perigo não mora apenas nesses valores, mas em como multimilionários e bilionários se ajudam entre si, se apoiam, defendem seus interesses de classe conjuntamente. Em um Congresso Nacional onde somente uma minoria com patrimônio relativamente baixo ou mediano prioriza os interesses da classe trabalhadora, é ilusório esperarmos que os multimilionários lutem por qualquer um além de sua própria turma.
O caminho para democratizar o Congresso Nacional
Ao contrário dos chiliques da imprensa e do próprio deputado Hugo Motta, que bate de pés juntos que não é verdade que o Congresso protege os ricos em detrimento dos pobres, enquanto reclama de “polarização social", o despertar de narrativas de classe popular que questiona a atuação do Congresso é saudável e democrático. Vivemos um contexto histórico recente onde muita atenção é colocada na figura do presidente em tempos de campanha, mas o voto em parlamentares é secundário. Assim, figurinhas carimbadas da política tradicional brasileira conseguem perpetuar seus assentos no Congresso, expandindo também sua influência familiar, fazendo uso de máquina eleitoral local, clientelismo e supressão de alternativas partidárias e candidaturas Brasil afora. Corremos o alto risco de que isso se aprofunde mais uma vez nas urnas em 2026, nos levando à repetição de “acaba de ser eleito o Congresso mais conservador da história - até o momento".
Lula já reclamou que é difícil avançar com as pautas de sua campanha quando o Congresso está dominado por interesses contrários. É aí que mora a justificativa para se dobrar a esse Congresso e mobilizar a base governista para apoiar desastres em projetos de lei em troca de apoio para ações estratégicas do executivo. Nesse círculo vicioso, não ganha nem Lula, nem o povo, pois todo o horizonte político é empurrado cada vez mais à direita. E para não chegarmos a 2026 com as mãos ainda mais atadas, é preciso desfazer as tramas de interesses da elite brasileira (e internacional) o quanto antes.
É extremamente importante que as queixas sobre a atuação do Congresso tenham resultado em reações da grande imprensa, de Motta e seus aliados. Isso significa que conseguem se lembrar que por trás dos três poderes há um quarto, ainda maior: o poder popular. O poder popular é limitado sob o capitalismo, mas não é nulo e, portanto, não deveria ser tão tímido. A mobilização e a cobrança em cima de pautas que defendem e cuidam da maioria do povo são amigas da democracia. A polarização, nesse sentido, é extremamente bem-vinda. Precisamos que o Congresso se recorde que foram eleitos pelo povo e que isso não lhes dá o direito de usar do seu poder de voto e articulação para favorecer indiscriminadamente aqueles no 0,01%. É necessário repetir sim, todos os dias, que este Congresso Nacional, composto por estes parlamentares, tem agido em conjunto contra a maioria do povo brasileiro. A atuação fervorosa de alguns guerreiros representantes do povo, que algumas vezes até se posicionam contra os equívocos de seus próprios partidos de esquerda, deve ser valorizada e defendida. Os parlamentares populares sabem e vivem no seu cotidiano a dureza de remar contra a maré. Sabem que não é uma questão de meras divergências, mas de organizar as diferenças de interesse e de poder. Até os bons parlamentares que estão ali concordam e repetem que este Congresso é sim inimigo do povo brasileiro - mas não precisa ser.
Há tempo para mobilizar, gritar e ecoar nossas pautas ao ponto de constranger a maioria de parlamentares representantes da elite a fazerem seu trabalho constitucional corretamente, cuidando dos pontos que melhoram a vida dos 99,9%, que protegem nossas condições ecológicas hoje e para as próximas gerações, e que cumprem nosso dever humanista de apoiar a paz em outros territórios. Se Motta e a Globo se incomodaram, é porque ouviram. Portanto, não me parece hora de interromper nosso ímpeto orgânico de reclamar e clamar.
Para além disso, nossas organizações políticas estão cada vez mais cientes de que é fraco o foco extremo no nome do próximo presidenciável, se não tivemos uma plataforma ampla que permita ocupar o próximo Congresso Nacional. Ainda é pouca nossa educação política coletiva sobre as diferentes funções entre o legislativo e o executivo e sabemos que a direita se aproveita dessa confusão para culpar todos os males na presidência (o que também nos atrapalha a cobrar quando, de fato, o erro vem do governo federal). A vantagem de trabalhar com pautas é que elas são maiores que qualquer ciclo eleitoral e qualquer representante, então plataformas como o Plebiscito Popular ajudam a lembrar que temos voz sobre a política, sobre questões que afetam o nosso dia a dia, e podem empurrar mais iniciativas sobre pautas coletivas com as quais candidatos ao legislativo devem se comprometer no ano que vem.
Temos um excelente momento para perguntas às pessoas: qual seu critério de voto para deputados e senadores? Você votaria em um deputado que é contra a redução da jornada de trabalho sem diminuição salarial? Você votaria em um senador que quer limpar a barra de empresas que poluem a água que você bebe? Você quer mesmo eleger um fulano que vota por uma medida que aumentará o custo da sua conta de energia todo mês?
A verdade é que, no hipotético, a maioria do povo diria que não, que não votaria nesses sujeitos. Mas, na realidade, a maioria votou nesses sujeitos. Por isso mesmo é dada a largada do constrangimento coletivo aos parlamentares que hoje zombam do povo mas que, em um ano, pedirão seu voto novamente. Estratégias de comunicação popular que nomeiam esses parlamentares farão o trabalho democrático que a imprensa empresarial se recusa a fazer: expor a verdade e ajudar com que a população tome decisões cada vez mais qualificadas.
Isso pode e deve ser feito dentro dos nossos limites éticos, pois viralização e barulho por si só não ganham eleições. O que ganha é confiança, relacionamento, trajeto, solidariedade e um caminho coerente de defesa da vida e do cuidado. Sigamos com o intuito de politizar as pautas, explicar e mobilizar as demandas, enquanto expomos os interesses tortos e perversos daqueles que hoje se aproveitam do seu poder no Congresso para saquear e oprimir. Que em 2026, em cada cidade, em cada estado, o povo saiba o nome do candidato à re-eleição que encareceu seu custo de vida, que entregou ementas milionários pro amigo, que assinou projetos de lei que prejudicaram sua comunidade. E que, com isso, fortaleçamos estratégias de construção de poder popular mais livres de, a todo tempo, ter que lutar contra quem o próprio povo elegeu.
vc é incrível❤️
Adoro suas análises, Sabrina! Me deixa com gostinho de quero mais. Além de inspirar certo otimismo, que eu diria ser fundamental. O que vc sempre fala, parafraseando Gramsci (acho rs), "pessimismo da razão e otimismo da vontade". ❤️