O que fazer com a minha ecoansiedade?
Sobre construir imunidade contra o capitalismo tardio que consome o planeta e os nossos corpos.
Na semana passada, me consultei com meu médico sobre as crises de ansiedade diárias que me afligem desde o meu diagnóstico de burnout ano passado. Pensei que já estaria melhor, mas entre os fatores que causaram a piora das últimas semanas está, nada mais, nada menos, que a crise civilizatória global. Considero até um pouco cômico começar uma consulta falando de mudança do clima, pois corresponde bem ao estereótipo do ambientalista que não sabe falar de outra coisa. Queria que fosse diferente, mas enquanto não escaparmos materialmente como sociedade da catástrofe socioecológica, será pauta de sala de aula, assembleia, bar e consultório médico.
A tendência é essa mesma, já que janeiro de 2025 não está fácil. O informe de que 2024 ultrapassou em média o limite estabelecido de 1.5ºC de aumento de temperatura global foi suficiente para causar alvoroço e angústia, mas não para provocar uma mudança radical em como a sociedade e seus governos abordam as metas climáticas. A possibilidade de frearmos o aquecimento abaixo de 1.5ºC já não é realidade matemática há muito tempo, demonstrando que os acordos globais que são desrespeitados por todos os lados mal servem de parâmetro hoje em dia. Está todo mundo atrasado. No Sul Global, falta capacidade para correr contra o tempo. Mas tanto aqui quanto no Norte, falta vontade. E se falta vontade, é porque o jogo de interesses do capital se apropriou de tal forma dos nossos diagnósticos e prioridades, que hoje o mundo todo é negacionista do clima.
Claro que ao abordarmos o negacionismo climático, Donald Trump aparece como um grande vilão. Já chegou desmantelando a tímida política climática dos Estados Unidos, saindo outra vez do Acordo de Paris (que está ultrapassadíssimo, mas é o que ainda temos) e prometendo uma política de “drill, baby, drill” (perfure, baby, perfure). Os incêndios recentes na Califórnia fizeram o que todos os eventos climáticos extremos fazem: grandes estragos, poucos avanços em conscientização e política do clima. No centro do imperialismo, não se espera grande coisa, mas ainda impressiona a capacidade de criação de caos doméstico ao mesmo tempo que prometem nacionalismos do tipo de “Make America Great Again". O lema do MAGA é real, mas ele engana bem a sociedade estadunidense, porque esconde o complemento da frase. “Make America Great Again For American Capital” é a real doutrina de Trump, onde o estado mais poderoso e bélico do planeta não é mais apenas um grande balcão de negócios da burguesia: sob Trump, os bilionários não negociam livremente com o estado, os bilionários são o estado.
Os próximos anos de império trumpista provocarão um retrocesso que não podemos pagar. É uma realidade que cutuca a minha angústia com a esquerda e os governos progressistas. Já é padrão sairmos de um período de horrores da extrema-direita no poder completamente acuados, fazendo política de mera recuperação, sem ousadia, sob uma estratégia política encurralada pelo medo - falei um pouco disso aqui:
Quando o assunto é clima, me faz muito mais sentido entrar em fase de recuperação, sim, mas também de construção de imunidade. Os quatro anos de respiro progressista deveriam ser tão chocantes quanto a extrema-direta sabe ser. Seria a oportunidade de mudar políticas radicalmente, causar para todos os lados, com o intuito duplo:
se conseguirmos avançar em políticas ao ponto de também ganharmos apoio popular para todas elas, será mais difícil que a extrema-direita retorne.
mas se ao avançarmos em tais políticas, a consciência popular ainda se mantenha atrasada ou até em oposição - principalmente por conta do poder de intervenção e captura da extrema-direita - ao ponto de um retorno da direita, ao menos saberemos que construímos tanto que será mais difícil destruir tudo logo de cara. É algo que tenho trabalhado como “economia de imunidade”, onde políticas de transição são estratégicas para nos manter no estado e também para nos ajudar a sobreviver quando perdemos o estado.
Nos EUA, a fraca política do partido Democrata (que é de direita, mas com ferramentas diferentes da direita dos republicanos trumpistas) facilitou a transição de Trump. Biden teve um governo tão fraco, sem disputa de mentes, sem grandes ganhos pra classe trabalhadora, que a derrota de Harris para Trump era esperada. Suas políticas para o clima foram covardes, limitadas e limitantes. Sua destruição de Gaza foi tamanha que, mesmo diante de um cessar-fogo pressionado por Trump (que aparentemente prefere retornar à sua política anterior de normalização de Israel que seguir comprando o desgaste do genocídio perpetrado por Netanyahu), os palestinos de Gaza têm permissão de retornar aos seus lares, mas suas casas e cidades não existem mais. É a lógica de um governo Biden que anuncia a retirada de Cuba da lista de países que apoiam o terrorismo (uma inserção artificial, de manipulação imperialista) logo antes da posse de Trump, justamente porque o ato é simbólico e vazio. Trump mal chegou e já revogou o memo de Biden, continuando a estrangular Cuba.
É por esse tipo de coisa que nem me choco com as imagens de Elon Musk e suas saudações nazistas. Não há ruptura suficiente entre o antes e depois, mas um aprofundamento de políticas que fortalecem os fascistas, que os empoderam, que os tornam confortáveis para agirem como quiserem. Essas pequenas alternâncias de poder entre governos de extrema-direita e os governos progressistas (ou de direita tradicional) não constroem imunidade alguma, apenas estabilizam a doença que o capital provoca no corpo planetário. Assim, chegando um Trump ou um Milei, há vulnerabilidade suficiente para que eles possam infectar o corpo todo com doses de um vírus mais pesado rapidamente.
Isso me deixa angustiada na situação global e na brasileira. Hoje tive o desprazer de ouvir um ninguém na rádio argumentar que ambientalistas não entendem de desenvolvimento e progresso, que o Brasil pode e deve explorar petróleo na Margem Equatorial, porque, afinal, os nossos vizinhos fazem isso também. Este ninguém saiu alegando que ambientalista fica batendo nessa tecla, porque é um tipo de gente que “vive de agenda". Melhor, aparentemente, seria ele, que vive de falar merda. Na batalha da comunicação, lidamos com jornalistas e comentaristas tendenciosos, que influenciam milhares e milhões ao mesmo tempo, promovendo negacionismos em nome de um desenvolvimento que nunca chega pra valer aos “miseráveis". E que quando chega, é com prazo de validade. Não existe soberania alguma em um planeta em chamas, mas o lobby do petróleo quer que acreditemos na capacidade grandiosa de financiar a transição energética perfurando e explorando cada vez mais, mesmo que não apresentem um plano sequer para que o lucro fóssil seja diretamente aplicado nas duas áreas necessárias para qualificar qualquer medida como transição energética: a expansão de renováveis (de forma justa) e a defasagem obrigatória da indústria fóssil.
Já explorei essa temática em outros artigos - como neste aqui no The Intercept Brasil - e o que me entristece é que nem posso responsabilizar o ninguém negacionista da rádio, porque ele apenas repete algo que sai da boca da presidenta da Petrobrás, limitando a capacidade real de construir a imunidade e soberania da própria empresa para além dos investimentos do poucos próximos anos. E assim a ecoansiedade aumenta.
Faz muito calor. Até onde é inverno e faz frio, não faz tanto quanto antigamente. No mundo dos cientistas do clima, fazemos piadinhas ruins de “este será o verão mais fresco de nossas vidas de agora em diante” na tentativa de rir das nossas próprias desgraças. Da minha parte, fico indagando o que fazer com esse livro que preciso entregar sobre transição ecossocial se apenas dois moldes políticos operam hoje, numa dança entre o negacionismo fóssil de morte rápida e o negacionismo capitalista verde de morte um pouco menos rápida. Cada cobrança política para que os governos que se propõem diferentes da extrema-direita realmente sejam muito diferentes é lida pelos fãs de partidos e políticos como um grande ato de “torcer contra". E eu aqui, de verdade - juro - torcendo a favor, insistindo que quanto mais radical um governo de esquerda tente ser, mais chances ele terá de alterar a correlação de forças e enfraquecer a extrema-direita que anda muito sorridente com suas novas prefeituras e seus planos para 2026.
Falei um pouco disso na minha entrevista recente para o El País, então não me surpreende que tenham escolhido justamente minha afirmação sobre retomadas de utopia para a chamada:
É uma ideia tão básica, mas vivemos um momento tão acuado que a própria afirmação de que a esquerda deve ser radical parece bastante radical. Para alguns, parece ser um luxo ao qual a esquerda não pode ceder agora. Para mim, é uma questão de sobrevivência, de imunidade.
Curiosamente, é bem parecido com o que meu médico de família me disse na semana passada sobre a mudança do meu tratamento. Não é possível tratar um burnout apenas com intervenções de resgate, nos picos das crises. É preciso construir condições para que o meu corpo consiga navegar os momentos de stress novamente sem desmoronar e, eventualmente, consiga combater o stress junto a mudanças imperativas de vida; ou seja, mais uma vez, como no texto que publiquei anteriormente, encontro um paralelo entre minha vida e saúde e as condições políticas do nosso tempo. Minha mente está superaquecida, o planeta também. A recomendação dos especialistas é a mesma: parar de tratar apenas os sintomas, começar a tratar as causas, construir condições para implementar as mudanças, e, por fim, garanti-las contra novos desafios que possam surgir.
Para não ser como eles
Depois de alguns anos na estrada, finalmente recolhi meus livros que estavam em Goiás e levei pra onde moro hoje. O processo de revisar sua biblioteca pessoal é interessante, pois revela fases da sua vida. Há livros que certamente não voltarei a ler, mas que possuem valor literário e acadêmico e foram direto para as caixas de doação para um biblioteca c…
Com isso, em meio a dias bem difíceis e instáveis, lembrei de outra coisa que disse na entrevista à Naiara (mas que não entrou no texto final publicado pelo jornal). Ela me perguntou como eu lido com tanta informação ruim, e eu, ciente dos impactos disso na minha ansiedade, falei, obviamente, de música, de dançar, de partilhar coisas boas com quem eu amo. Um dia depois da entrevista, Bad Bunny - um dos meus artistas favoritos - lançou um album novo que está rompendo bolhas, até mesmo no Brasil onde tantos diziam que seria um mercado impossível para ele.
Quem me acompanha no instagram já me viu falar de DeBÍ TiRAR MáS FOToS algumas muitas vezes - e há conteúdo infinito de velhos e novos fãs do Benito sobre a política e cultura representadas nessa obra. Então, aqui, só gostaria de destacar uma outra coisinha: arte e cultura fortalecem nossa imunidade para os tempos de superaquecimento global. Cantar, dançar, e ir ao show do seu artista favorito são alimentos que nutrem nossa capacidade de seguir sonhando e também nos ajudam a valorizar o que já temos.
Nem é preciso que a obra seja explicitamente política para que ela te fortaleça politicamente. É claro que minha conexão com o Bad Bunny é assim porque abraço a agenda de transição energética justa em Porto Rico há muito tempo, mas posso aproveitar El Apagón (do álbum de 2022) tanto pela crítica à pobreza energética quanto pelo perreo que ultimamente tem me feito falta. Assim, estou ouvindo muita música esses dias, para construir imunidade e combater essa ansiedade que tem me consumido na política e no trabalho - até me impedindo de sair pra dançar.
Tem uma galera careta da velha esquerda que odeia festa, que acha que é bagunça, que não tem pinta de revolucionário pra eles. De cá, já afirmei que não quero ser como eles. Vou analisando a realidade atual, traçando estratégias, escrevendo um pouco todo dia pra não ficar tão atrasada no trabalho, mas também vou me nutrindo de muita música e poesia. Isso faz bem pra minha imunidade e faz bem pra minha capacidade de retomar as utopias. Com um pouquinho de Bad Bunny aqui e um pouquinho de Emma Goldman ali, vou lembrando que preciso ter forças para dançar e também para fazer revolução.
Cuando no estoy en la buena
Tú me lleva' a hacer castillo' de arena
Y los castillo' se convierten en aldea'
Un pueblito donde no existen problema'
Y ahí soñamos con un futuro
Que estemo' bien, no hace falta mucho
Por un segundo nos olvidamos de to'
WELTiTA
Bad Bunny & Chuwi
Sugestões:
Playlists: Meu perfil no Spotify
Apenas Sabrina Fernandes para mesclar mudanças climáticas e Benito num texto com tanta maestria
Fazemos parte do metabolismo do planeta, somos Natureza, e se o Capital adoece o planeta a gente também adoece. Me parece que somos poucos os que têm essa consciência do que se sofre no corpo. Obrigado por compartilhar!