Para não ser como eles
“Minha única ambição é ser um escritor capaz de reproduzir a esperança, a razão e a falta de razão deste mundo louco que ninguém sabe para onde vai.”
Depois de alguns anos na estrada, finalmente recolhi meus livros que estavam em Goiás e levei pra onde moro hoje. O processo de revisar sua biblioteca pessoal é interessante, pois revela fases da sua vida. Há livros que certamente não voltarei a ler, mas que possuem valor literário e acadêmico e foram direto para as caixas de doação para um biblioteca comunitária. Há livros que estão ali para ser lidos novamente e também como lembretes. Dois que me marcaram profundamente e politicamente escapam da noção convencional dos livros teóricos e políticos que comumente citamos nos trabalhos: Ser como eles e As veias abertas da América Latina, ambos do escritor uruguaio Eduardo Galeano.
Curiosamente, há cerca de dez anos, Galeano afirmou que não voltaria a ler “As veias abertas". A razão seria dupla, tanto pela evolução dos dilemas de esquerda e direita no nosso continente, quanto pelo seu reconhecimento de que, de fato, ele não tinha toda a formação adequada para escrever o que escreveu ali, ainda que não tivesse se arrependido de tê-lo escrito. Para mim, essa é uma das reflexões mais bonitas que um autor da estatura de Galeano poderia ter feito em vida.
Os últimos três anos foram de grandes mudanças pra mim. Morei em vários países, viajei a trabalho mais que em uma vida inteira, saí da prisão de um relacionamento adoecedor, me despedi pra sempre de minha mãe, militei em diferentes frentes de diferentes lugares, tive altos e baixos de saúde, comecei uma nova fase da minha carreira de pesquisadora (no Alameda), e encerrei o Tese Onze sob um entendimento de que coisas precisam acabar para que outras possam nascer. É curiosa essa reflexão, porque foi produzida em algum lugar do meu subconsciente em paralelo às minhas análises gramscianas-políticas sobre o interregno. A vida, como a política, é feita de ciclos e, muitas vezes, somos nós que perpetuamos e normalizamos os sintomas mórbidos por lutar contra enterrar moldes passados em vez de aprender com eles para construir coisas realmente novas, que se sustentem e perdurem.
Galeano me faz pensar sobre isso, sobre aceitar nossa produção, nossa trajetória, mas também se dar permissão para desgostar, criticar, deixar de lado e até abandonar se for preciso. Nas inúmeras vezes que me perguntaram a razão de encerrar o Tese Onze - afinal, parece loucura abandonar um projeto de 6 anos com centenas de milhares de seguidores e um público querido e fiel - sempre explico que é um misto de coisas, mas o mais interessante de tudo pra mim é que encerrei porque pude. Eu entendi que muitas coisas difíceis e bonitas saíram dali, mas que seria importante criar espaço para coisas difíceis e bonitas diferentes, em outros formatos, na minha vida. Felizmente, eu tive o cuidado, desde o princípio, de manter o projeto como paralelo à minha militância e à minha carreira, diminuindo conflitos e dependência. Isso me permitiu fechar uma porta, mas não outras, facilitando uma reflexão pessoal sobre trajetória e escolhas.
Essa reflexão aparece simbolicamente cada vez que seleciono um livro para a estante e outro para a doação. Tem muita coisa que eu li e que moldou meu pensamento, mas que hoje impacta tão pouquinho... Tem coisa que eu tenho sede de ler novamente, quase como uma necessidade de reaprender, como uma língua estrangeira que fiquei muito tempo sem praticar e preciso retomar. E tem a escolha das leituras futuras, dos próximos lançamentos, das descobertas: vale mesmo a pena?
Me vejo como uma grande crítica do produtivismo acadêmico e da produção fordista de teorias, conceitos, estudos, artigos. Porém, confesso que a exposição da internet, a ânsia por estar a par de assuntos diversos e a pressão para comentar e analisar o mundo influenciaram demasiado minha lista de leituras. No mundinho internético é possível tratar qualquer tema como sujeito da máxima “Você é fã mesmo do artista X? Pois cite aí 10 álbuns". Quer estejamos discutindo clássicos como Marx e Rosa Luxemburgo, ou contemporâneos como Angela Davis, Vladimir Safatle e Moira Millán, existe uma pressão para ler tudo e acompanhar tudo, ou nosso conhecimento será tido como incompleto. Mas olhem só que ilusão! Todo conhecimento pessoal é incompleto. Não importa o quanto o seu professor ou youtuber favorito se sinta empoderado para comentar qualquer tema, seu conhecimento é incompleto.
É na coletividade que podemos chegar mais perto de conhecimentos completos. É na dinâmica do diálogo, da crítica, do (re)aprendizado, assim como da dúvida e do erro, que aprimoramos o que sabemos. Dessa forma, é preciso valorizar como, até na política, a especialização cai bem. A especialização não deve ser isolamento, tampouco permissão para se fechar em uma tema ao ponto de falar bobeiras quando o tema esbarra em outros. O ato de se especializar é um compromisso com a criação de lastro e de confiança numa produção. É também o reconhecimento humano de que não se pode saber de tudo e querer fazê-lo é sintomático da intersecção entre tolice e soberba (que pode contaminar a qualquer um hoje em dia, especialmente na era de influencers).
Eu trabalho com o tema ecológico e de transição desde os primórdios da minha graduação em economia. Transição energética foi a primeira coisa que pesquisei e acho lindo que, num trajeto interdisciplinar que valorizo tanto, ainda consigo nomear linhas de aprendizado e lastro gerado ao decorrer de quase duas décadas em que me reconheço pesquisadora. Essa interdisciplinariedade me tornou uma pesquisadora melhor, me tornou melhor professora também. No Tese Onze, isso esteve muito presente desde o começo e será sempre um legado na minha vida. Mas o que é mais certo para mim é o quanto aprecio a oportunidade de focar novamente, de alinhar os conhecimentos diversos com objetivos mais afinados e precisos na minha pesquisa e na militância. Posso ser feminista e defender direitos reprodutivos, mesmo que minha energia esteja focada, na maior parte do tempo, em reduzir emissões de gases de efeito estufa e promover a adaptação climática da sociedade. E posso juntar Palestina com clima, não porque quero falar de tudo, mas porque compreendo as ligações profundas entre a colonização e o desastre ecológico.
No fim, é possível selecionar os livros que saem, os que ficam, e os que virão, tanto quanto se pode selecionar onde investir mais do seu tempo e como fazê-lo sem se quebrar, sem ilusões de onipotência intelectual ou de autosacrifício moralista militante. É possível reconhecer lacunas do passado, não por falta de leitura, mas talvez por excessos que impediram de olhar mais perto para algo que estava debaixo do próprio nariz.
Isso me deixa esperançosa pro momento em que me encontro: tentando escrever um livro que condensa quatro anos de pesquisa direta sobre transição ecossocial e internacionalismo, e mais tempo ainda de reflexões sobre a vida e o planeta. Será meu primeiro livro escrito mais distante dos holofotes. Apesar do sumiço parecer uma péssima escolha comercial, sinto que é a melhor escolha intelectual que eu poderia fazer agora. Escrever com mais silêncio, escrever com mais filtro, e fazer isso porque, felizmente, eu posso. Porque meu trabalho, minha editora, minhas instituições de apoio à pesquisa, minha organização militante, e minhas pessoas que amo me acolhem com espaço para acertar e errar em segurança, assim produzindo algo mais sólido, mais imune às análises de pauta quente e às normas da tudologia predominante.
É o que vai me permitir superar os pessimismos latentes no diagnóstico que faço da realidade para me apegar a algum sentido de mobilização e pulsão de vida na mensagem que quero passar. Como Galeano, estou tentando me encontrar entre a razão e a falta de razão desse mundo, apesar de eu ser muito mais pequenina (e encontrar paz, enfim, no cantinho da especialização). Se eu conseguir fazer isso em mais uma obra, também provarei pra mim mesma que minhas motivações não foram, ao fim, sequestradas pela lógica do engajamento e viralização capaz de distorcer, no inconsciente coletivo, a lógica de produção de tantos por aí. Não quero ser como eles.
Dicas de leitura (caso façam real sentido na sua vida):
Jana Viscardi - Escrever sem medo
Gosto muito de como você consegue propor reflexões sérias de maneira tão… poética. Esse texto é um primor. No final, o velho resumo de que ninguém sabe de tudo, ninguém se basta, e cada um importa, no coletivo. Despidos de soberbas e egos, que retiram o coletivo do horizonte, somos muito melhores. Sou muito feliz por ter te conhecido através do Tese Onze e encontrado em você uma figura que inspira tanto. Boa sorte na escrita do livro! Esse texto me diz que ele está muito bem encaminhado. Já contando com a minha edição ❤️🩹
Muito lúcido o seu texto, fiquei feliz de te encontrar por aqui! Acompanhava seu canal no YouTube e li alguns trabalhos seus, sempre me perguntava se suas reflexões poderiam ser atravessadas pela psicanálise em alguma medida. Com esse texto, que traz essa noção tão nítida de uma (boa) insuficiência na construção do conhecimento, me senti em casa como psicanalista. Sustentar a falta e a partir dela criar algo novo é sempre revolucionário (no micro e no macro). Abraço