Quem ama um povo além do seu?
Estamos indignados com o mundo. Mas só compramos a briga mesmo quando amamos.
Ultimamente, sinto que meu coração vai explodir. É figurativo, mas às vezes dói fisicamente também. Na ocasião da passagem da Preta Gil, uma frase dita pelo seu pai em sua turnê voltou a ecoar: amar é mais difícil que morrer. Nós, seres humanos, temos uma capacidade incrível de amar. Amamos pessoas, coisas, causas, amamos até mesmo o amor, porque quando amamos e nos sentimos amados, algo muda, algo nos nutre um pouco mais e faz a vida ter mais sentido. O amor, eu sei, me move como pessoa e me move politicamente. Até o ódio que eu tenho pelo opressor é movido por amor, ao oprimido. Esse entendimento é muito importante pra mim e por isso reflito sobre ele rotineiramente. Na policrise, na calamidade, na guerra, no genocídio, o esperado seria endurecer e apenas odiar, mas o ódio sem uma referência de amor perde o foco e contamina. Odiar o opressor só por odiá-lo nos torna mais parecidos, pois faz com que esqueçamos a razão de tudo: para amar, tem que viver, e é por amor à vida que odiamos a morte.
Tenho insistido em amar muito por isso. Preciso continuar sendo humana e nadar na contracorrente do mundo desumanizador. Foi no humanismo (marxista) que me encontrei e me localizei na luta política. Quero continuar reclamando o sentido da humanidade que os opressores insistem em deturpar com sua violência e exploração. Sinto que isso me permite tecer mais conexões e entender melhor as razões das coisas - não pela vaidade de estar certa, mas para ajudar a derrubar os muros dos nossos erros coletivos. Para muitos marxistas, isso é algo demodé, piegas, ou até mesmo um tipo de fraqueza (juro que alguns, dentro do seu machismo, creem até mesmo que falar de amor na política é coisa de “mulherzinha”). Felizmente, sou blindada pelo feminismo, pela natureza, e pela descolonização constante até da forma de sentir. Penso que é o amor que alimenta a responsabilidade que eu sinto, mantendo respeito a mim mesma e a meus limites, e me faz buscar alternativas mesmo quando o pessimismo da razão ronda e faz casa. Isso é importante, pois como já escrevi antes, quase nunca mais encontro o otimismo da minha vontade. E se é preciso manter então uma obrigação da vontade, o amor pode ser uma excelente fonte de energia.
Assumo esse tom um pouco brega, que espero que ressoe como cuidado e acolhimento, porque tenho insistido em amar justamente ao ver o mundo com tanta dor e cada vez mais temor. Temos um bebezinho agora na família e sempre que olho pra ele me encho de amor e também de indignação pelo mundo que está herdando, marcado pelo passado. Ontem, coloquei ele pra ninar e pensei em como esses dois sentimentos pareciam contraditórios, mas não eram. Me peguei tentando identificar quais foram minhas primeiras memórias na infância de sentir indignação porque amava. Me lembrei da vivência no campo, quando meu pai e tios mataram um porco na área de fora da cozinha para o jantar e chorei ao ouvir seus gritos. Aos 9 anos, disse que não comeria mais porco, o que durou cerca de um ano e teria sido mais se não tivesse a ignorância de que bacon também era pedaço de porquinho. Menos de vinte anos depois, adulta, parei de comer carne para sempre e sei que isso foi semeado por amor.
Acho que foi assim também que entendi melhor sobre desigualdade e a luta por moradia. Meu pai, como bom sertanejo de Goiás, me acompanhava no violão para dormir, até que um dia o interrompi chorando. Ele cantava a “Balada da Caridade” e chovia lá fora:
Para mim a chuva no telhado / É cantiga de ninar / Mas o pobre meu Irmão / Para ele a chuva fria / Vai entrando em seu barraco /E faz lama pelo chão / Como posso ter sono sossegado? / Se no dia que passou / Os meus braços eu cruzei? / Como posso ser feliz / Se ao pobre meu Irmão / Eu fechei meu coração / Meu amor eu recusei?
Eu estava indignada. Estaria um dos meus tios com lama em seu barraco enquanto eu estava quentinha na coberta com meu pai ao lado? Meu pai riu com bondade e me explicou que o irmão da canção era um “irmão em Deus” e que isso significava que não podíamos recusar amor às pessoas com necessidade, que precisávamos ter bondade no coração. Foi nessa época que aprendi que no passado papai tinha se envolvido em vários mutirões. E foram muitos anos até que eu aprendesse que antes de eu nascer com uma cama quietinha, meu pai e meus tios moraram sim em barracos com lama, em casinha “beira-chão”, enquanto meu avô buscava trabalho a cada estação nas fazendas da região. A partir daí, cada vez que eu lembrava disso, eu olhava com mais carinho, mais amor para as lonas pretas dos assentamentos sem-terra no meu estado. Foram coisas assim, no meio de tantas outras, que me ensinaram o que é alteridade, na prática. Se não fosse o amor, dali não haveria brotado a solidariedade. E sem a solidariedade, eu teria demorado mais para entender que nada muda sozinho, que devemos mudar tudo nós mesmas, e que devemos mudar todas nós.
É por isso que quanto mais eu amo, mais sinto necessidade de ação. Peço que não se confunda, porque tenho aversão àquele tipo de ação de heróis individuais, que combinam mais com histórias masculinizadas e um personalismo que carrega contradições desnecessárias para a já difícil tarefa de articular lutas coletivas. Sinto necessidade de ação estrutural e ainda bem que sinto isso, pois me impede de me contentar com pouco, me faz celebrar vitórias cotidianas sem abrir mão do nosso programa máximo de vida saudável e emancipada nesse planeta único que temos.
O que me traz, sempre, à Palestina.
Eu não tenho raizes palestinas e até certa idade nunca tinha ouvido falar. Fui uma criança tão convicta que Jesus tinha nascido em Belém do Pará, que nem passava pela minha cabeça verificar essa informação. Israel era coisa do Velho Testamento e nada mais. Foi quando minha mãe me contou que uma conhecida da igreja ia viajar para se batizar no Rio Jordão que passei a olhar para essa terra lá fora, pois meu mundinho de menina nascida em Campinas, Goiânia (que eu achava ser a mesma Campinas da minha então cantora favorita Sandy também) era de países que jogavam na Copa do Mundo e um ou outro a mais. Quando a Sabrina adolescente começou a estudar melhor a história do mundo e entender o seu tamanho, sua complexidade, suas guerras e suas dores para além do Brasil, a Palestina já era ocupada há décadas. Seu povo já vivia sob apartheid, sua terra já era marcada por limpeza étnica.
Mesmo na universidade, muitas narrativas comuns dos professores eram de um “conflito” entre povos que se odiavam. Aqui no ocidente, tem muita coisa tratada como intelectualidade que conclui simplesmente que o que se passa no Oriente Médio é coisa de gente irracional, muito emotiva, muito intolerante. Felizmente, eu logo aprendi que isso era interpretação orientalista, logo aprendi sobre imperialismo e logo conheci um casal de amigos - ele judeu, ela palestina - que me formou de vez na luta pela liberdade do povo palestino. Sim, mais uma vez o amor deu aquele empurrão que nem os melhores livros conseguiram sozinhos. Como boa leitora de Freire que eu já era, isso fez sentido. Foi ele mesmo que tinha me ensinado sobre amar para ter raiva justa, bem ali na Pedagogia da Autonomia, pouco depois de ter me convencido que para ensinar é necessária a pesquisa (ela também meu grande amor):
Tenho o direito de ter raiva, de manifestá-la, de tê-la como motivação para minha briga tal qual tenho o direito de amar, de expressar meu amor ao mundo, de tê-lo como motivação de minha briga porque, histórico, vivo a História como tempo de possibilidade não de determinação. Se a realidade fosse assim porque estivesse dito que assim teria de ser não haveria sequer por que ter raiva. Meu direito à raiva pressupõe que, na experiência histórica da qual participo, o amanhã não é algo “pré-dado”, mas um desafio, um problema. A minha raiva, minha justa ira, se funda na minha revolta em face da negação do direito de “ser mais” inscrito na natureza dos seres humanos.
Paulo Freire
Minha justa ira à colonização sionista me fez amar a Palestina e seu povo ainda mais. Nas vezes que estive ali, transbordei de amor, voltei com mais briga no corpo. Briga que me dizia que uma situação tão radical demandava solidariedade radical também. Por mais que palavras sejam também boas armas (sou escritora, afinal), era preciso desnormalizar o colonizador. Passei a rejeitar mais ainda a diplomacia de boa convivência, porque, mesmo entendendo que a geopolítica é um terreno complexo e contraditório, há linhas que devem ser respeitadas nas nossas alianças. O horror que eu já sentia por saber que o Brasil colaborava militarmente com Israel triplicou. Imagine então quão maior é o horror que eu sinto por saber que nosso presidente, alguém infinitamente melhor que o sionista fascista anterior, reconhece que há um genocídio em curso, mas não age para que o Brasil deixe de ser uma das fontes energéticas dessa matança!
O estágio atual do genocídio é de tortura. Sim. O ato de matar pessoas de inanição, desnutrição e fome no decorrer do tempo é ato de tortura. Insatisfeitos em torturarem apenas indivíduos palestinos, Israel tortura milhões de uma vez. Faz tudo isso sob o olhar dos aliados e dos demais estados que declaram suas indignações, mas não buscam intervir de verdade. Pode até ser que esses líderes estejam com raiva de Israel, de Netanyahu e do exército israelense, mas tanta inação indica que lhes falta amor, aos palestinos. Atualmente, os interesses de nossas petroleiras, da indústria bélica, do agronegócio, são mais amados que os palestinos. Se há outros afetos, devem ser medo e covardia. Parece até então que, salvo algumas exceções, qualquer preço para sancionar Israel é alto demais para essas lideranças. No caso dos líderes progressistas, realmente acho que odeiam a guerra e a morte, mas seu amor pela humanidade anda limitado, anda restrito, anda afundado em sua pequenez.
Esse amor pequeno tem sua função política, mas é do tipo que me deixaria preocupada com meu tio em seu barraco enlamaçado, sem me juntar jamais à luta por moradia digna. É um amor de clã, apenas dos nossos, e esse “nós", olhe lá, pode ser muito, muito restrito. Já o amor que move a solidariedade exige o reconhecimento do outro. Exige reconhecer que você não precisa ser palestino para amar os palestinos. O pertencimento político se faz na luta, pela causa, na concretude do nosso compromisso com justiça.
Infelizmente, quanto mais crianças morrem lentamente e dolorosamente de fome em Gaza, mais a noção de justiça também se esvazia. Menos moral teremos para buscar justiça se não tentamos aplicá-la quando temos as ferramentas para tal. E menos moral teremos para ensinar às nossas crianças sobre justiça se deixamos que outras, iguais em inocência, iguais em capacidade de dor, morram em algumas das formas mais cruéis. Me parece que nossos líderes não entendem que a falta de ação concreta é um tipo de tolerância e que ao tolerarmos o genocídio do outro, ensinamos aos nossos que algumas vidas valem menos. Permitindo a desnutrição das crianças palestinas também empobrecemos o nosso solo político, solo onde os opressores trabalham melhor.
Se a solidariedade pura e simples, movida pelo amor aos palestinos, não é suficiente então para que essas lideranças teoricamente democráticas ajam, deveriam então ao menos agir pelo amor aos seu próprio povo e às próprias conquistas, pois nisso, Gustavo Petro estava certo: a morte da Palestina anuncia mais morte para a humanidade. Se amamos o nosso povo, se amamos nossas crianças e as protegemos do barulho da rua na hora de dormir e lutamos por sua comida, lembremos que quando um opressor lá fora mata crianças com bomba de noite e de fome de dia, um opressor aqui do lado vai querer copiar também. Pode parecer pessimismo, mas amar é difícil mesmo e proteger a vida nos obriga à vontade da ação.
Quando comecei a militar, ainda adolescente, acreditava que o amor era irrelevante diante da fome, da sede e da exploração. Alimentava imagens de masculinidade combativa e confiava no ódio revolucionário como motor da justiça. Hoje percebo que essa fantasia carregava não apenas imaturidade, mas também traços de um machismo internalizado, que confundia força com agressividade e descartava a potência da solidariedade. Com o tempo, entendi que amor e solidariedade não são concessões frágeis, mas fundamentos de qualquer mudança verdadeira. Você expressou com precisão: odiamos os opressores porque amamos os oprimidos. Ótima reflexão, Sabrina.
O texto, além de muito bonito, é importantíssimo. Obrigado!