Brasil soberano é Brasil sem devastação
Quando o Congresso Nacional é inimigo da natureza, ele também rouba o povo e o futuro da nação.
A composição do atual Congresso Nacional é a mais conservadora e a mais autoritária que tivemos. É também a mais anti-ecológica. Na época do governo Bolsonaro, de suas alianças para passar a boiada e tratorar o país, era até difícil crer que poderia piorar. Mas a perpetuação de verdadeiras aristocracias políticas proprietárias do agro no Brasil, junto aos interesses financeiros na mineração, na especulação, e nas empreitadas de infraestrutura, torna nosso país um ambiente de predação contínua em cima de recursos e das condições materiais de sobrevivência. No Sul Global, nos territórios condenados pelo “desenvolvimento” capitalista a serem eternas zonas de sacrifício, até mesmo projetos que pareceriam verde a olho nu, como a implementação de energias renováveis, se tornam motor da devastação. É o que permite jabutis horrorosos dentro de projetos de lei que visam a transição energética, é o que permite o greenwashing constante de modos de produção que matam o solo, matam indígenas e quilombolas, e que roubam nossas águas e contaminam o nosso ar.
A crise ecológica é a crise fundamental do nosso tempo, influenciando todas as demais, e por isso mesmo merece nossa atenção, inclusive ao agitarmos a necessidade de uma transformação democrática do Congresso Nacional.
Foto de Porto Alegre: Renan Mattos (Reuters)
O Congresso da devastação
Salles nem imaginava que ao falar de passar a boiada, ele nos permitira enfatizar questões centrais da postura devastadora da direita (e, lembremos, de parte da esquerda desenvolvimentista, “progresso” a todo custo, amiga da destruição prolongada em nome de alguns índices econômicos positivos a curto prazo). Nossa realidade política é completamente capturada pelo agronegócio. É uma verdade tão grande, que a chantagem imperialista de Donald Trump em nome da família Bolsonaro foi mal aceita pela própria direita bolsonarista por atingir os interesses do agro. A família Bolsonaro, como de praxe, se esqueceu que o golpismo e o autoritarismo apenas se sustentam quando alinhados ao interesse econômico dos mais poderosos e, hoje, na sanha de livrar Jair do destino justo de uma punição, demonstra não entender muito de como funciona a economia brasileira, o comércio exterior e que, até mesmo na extrema-direita, ideologia sozinha não sustenta alianças. Alianças são sustentadas por projeto de poder: enquanto a esquerda deveria se lembrar disso sempre para nutrir poder popular em aliança com a maioria da população, a direita tem dificuldades de lembrar que, no fundo, as famílias milionárias (e bilionárias) do legado colonial e do agronegócio não precisam de Bolsonaro para lucrarem; pelo contrário, ao concentrarem seus esforços historicamente em ocupar o parlamento, em garantir contratos, em fazer propaganda, e em convencer qualquer governante que o Brasil não avança sem eles, os donos da boiada ganham através de sua captura do estado brasileiro, não apenas de um governo.
A estratégia dos donos da boiada é múltipla. Há enorme investimento cultural (sigo recomendando este livro da Ana Chã). Há enorme diversificação financeira (bancos e agências cada vez mais especializados na carteira do agro, assim como reinvestindo o lucro do agro em outros setores). Há participação ativa nos planos de infraestrutura e desenvolvimento no Brasil (tendo a Ferrogrão, projeto da Cargill, e a BR-319, criticada corretamente por Marina Silva e defendida infelizmente pelo viés desenvolvimentista do presidente Lula, como dois grandes símbolos dessa influência). Há aliança concreta com a mineração industrial nociva (ambos interessados na dominação do sistema de commodities nas exportações brasileiras). Há participação na segurança pública dos estados (bastante visível no movimento “Invasão Zero” de fazendeiros na Bahia, que agem protegidos pela PM que mais mata no Brasil).
Eu poderia listar muito mais coisas, como já fiz anteriormente, que comprovam que os donos da boiada sequestram a economia e a política brasileira, e por consequência, destroem as condições materiais para justiça, redistribuição das riquezas, e verdadeiro progresso na nossa nação. Mas diante do avanço do PL da Devastação, é importante não perder de vista o óbvio: este Congresso Nacional não é inimigo do povo somente quando impede o avanço de pautas populares do governo federal, mas também quando se aproveita do frenteamplismo e do cada vez mais frágil presidencialismo de coalizão, para destruir os pilares mais básicos da capacidade de vida saudável dentro das nossas fronteiras e para além delas.
Numa manobra perversa, o domínio dos interesses comuns do agronegócio, da mineração, das indústrias de energia, e das construtoras dentro do Congresso Nacional, bota em risco o povo brasileiro e, ao acentuar as mudanças climáticas e ultrapassagem dos limites planetários, também os povos trabalhadores de todo o mundo. Assim, o PL da Devastação tem um peso muito maior do que aparenta: não é preocupação apenas para ambientalistas e povos diretamente atrelados ao cuidado da Natureza. Deveria ser atenção principal de todos que respiram, que comem, que bebem água e que pretendem construir uma sociedade saudável para seus filhos e netos. Com excessão dos herdeiros da classe dominante, que poderão comprar seus bunkers e alimentos a peso de ouro (afinal, sua classe já come carne com ouro), nossas crianças são diretamente ameaçadas por esse Congresso Nacional.
O licenciamento ambiental justo protege nossas crianças
É importante falar de crianças, porque, na verdade, tudo na política é sobre crianças. Nesse ponto, não estranhamos que os conservadores gostam de enfiar “crianças” em qualquer assunto, principalmente para causar pânico moral, distorcendo pautas sobre uma grande ameaça. Afinal, sabem que nós queremos o melhor para nossas crianças (e, idealmente, para todas as crianças, inclusive as palestinas), então o apelo funciona. O que escondem no seu pânico moral é que a maioria das pautas dos conservadores são sobre crianças não porque as protegem, mas porque representam a verdadeira destruição dos meios de vida necessários para que crianças cresçam em segurança, num planeta saudável, livres de conflito, guerras, agrotóxicos em sua comida, pó de minério em seus pulmões, cinzas de queimadas em seus olhos, e o zumbido doentio de usinas eólicas megalomaníacas em seus ouvidos.
O PL da Devastação, aprovado pelo Senado (o mesmo que atacou covardemente nossa ministra do meio ambiente), agora está nas mãos de Hugo Motta (o mesmo que quer aumentar a quantidade de deputados, que faz obstrução contínua às políticas de maior justiça tributária do governo federal, e que torrou centenas de milhares de reais do dinheiro público em voos particulares).
O PL 2159 ameaça o abastecimento de água em nossos municípios, pois retira a exigência de outorga de recursos hídricos. O PL permite que empreendimentos sejam autolicenciados, baseando-se em um formulário online e a promessa de boa conduta das empresas envolvidas. O PL favorece o agro de forma grotesca, retirando as exigências de licenciamento para as suas atividades. O PL também privatiza lucros e oficialmente estatiza prejuízos referentes a danos e desastres ambientais. Tudo isso é facilitado pela transferência de certas responsabilidades para municípios e estados, algo muito desejado pela extrema-direita que controla prefeituras e governos estaduais em nome dos seus aliados do agro e da mineração. As regras se tornarão arbitrárias e a troca de favores entre políticos e empresários se tornará cada vez mais comum e justificada.
Num momento de emergência climática já conhecida no Brasil, o PL da Devastação chega para piorar a situação e transformá-la em catástrofe climática permanente. Os mais prejudicados serão, primeiro, os mais pobres, nas periferias e no campo, já abandonados em casos de enchentes, secas, queimadas e deslizamentos. Mas se engana a pessoa de classe média no meio de São Paulo que acha que não será atingida. Se engana aquele pai que pensa que protegerá seus filhos e garantirá seu futuro apenas deixando uma casa própria de herança ou investindo numa escola particular e plano de saúde. O catástrofe ecológica aumentará o fardo dos sistemas de saúde público e privados, dificultará o acesso à educação e até mesmo a moradia própria deixará de ser símbolo de estabilidade a partir do momento em que tudo pode vir por água abaixo e centros urbanos se tornem segregados e fragmentados em nome do acesso a recursos.
Por isso mesmo, o PL da Devastação não devasta apenas o “meio ambiente” (que tanta gente nas cidades erra ao pensar que é algo distante do seu dia a dia). É o PL da Devastação da Vida, da sua vida e da sua família. Ele mostra como a defesa de crianças e da família por parte da direita brasileira é hipócrita e manipuladora. Se não há água potável e acessível, se não há ar respirável e livre de químicos, e se empreendimentos econômicos ganham a liberdade para se instalarem onde quiserem, sem prevenção adequada de impactos, a própria segurança nacional se torna cada vez mais ilusória. E sem natureza saudável, sem condições de vida boa permanente para a maioria da população, e sem segurança e estabilidade, não há soberania alguma.
Nesse momento de defesa da soberania brasileira diante de Trump e dos Bolsonaros, vale lembrar, então que defender um Brasil Soberano, que defender um Brasil para os Brasileiros (como vemos nos mesmos bonézinhos da esquerda que quer perfurar mais petróleo a todo custo), exige defender os ecossistemas no Brasil que prestam um serviço essencial à vida dos brasileiros. Atualmente, até a centro-esquerda é frouxa no tema do PL da Devastação, favorecendo os aliados de Motta e a velha ilusão de que o agro pode ser um parceiro do desenvolvimento. Como destacado em uma excelente reportagem do Sumaúma, ministros e parlamentares governistas fizeram parte do jogo de articulações e omissões que trouxe o Pl da Devastação até aqui. Infelizmente, de acordo com a matéria, até senadores petistas de importante atuação progressista, falharam pesadamente nessa pauta:
A atuação de Contarato na condução do caso lhe rendeu críticas entre auxiliares de Marina e ambientalistas. Frustrou-se quem esperava que, ao perceber quão ruim era o conteúdo do relatório, o senador capixaba decidisse protelar a votação – o que, na pior das hipóteses, forçaria Davi Alcolumbre a ser abertamente truculento, ignorando as comissões e pautando o texto diretamente no plenário. “Entre manter sua palavra a Alcolumbre e sua coerência política, ele escolheu manter a palavra”, afirmou a SUMAÚMA um integrante do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que pediu para não ser identificado.
Quando o assunto é natureza e condições ecológicas de vida, é visível que até parlamentares de esquerda (ou centro-esquerda, como queiram classificar) cedem às tentações e caem, ocasionalmente, no mesmo campo que consideramos inimigo do povo no Congresso. Cabe a nós seguir em cobrança e mobilização para que fique claro que qualquer pauta destruidora do meio ambiente é também uma pauta contra o povo brasileiro e contra a soberania de nosso povo - afinal, a soberania popular e ecológica é o que determina a capacidade real de soberania nacional para além do militarismo e acordos comerciais.
Dessa forma, levantemos sim a bandeira de um Brasil Soberano, e façamos isso em nome de um Brasil Ecológico. Não ao PL da Devastação!
Confira no post abaixo as mobilização de 13 de julho na sua cidade:
Sabrina, você viu o artigo (https://iopscience.iop.org/article/10.1088/1748-9326/adb7f2) do Gerard Wedderburn-Bisshop que coloca a agricultura (em especial, claro, animal) como principal impactante no aquecimento global, muito à frente das fósseis? Ouvi a entrevista com ele no Planet: Critical (https://www.planetcritical.com/p/gerard-wedderburn-bisshop) e parece muito bem embasado. O que você acha? E fiquei pensando que com essa inversão, o Brasil passa a ser um dos maiores vilões atuais das mudanças climáticas, dada a criação animal e de grãos para alimentação animal, desmatamento para uso do solo com esses fins etc, em contraposição ao atual discurso de bom moço do mundo da matriz energética "limpa".