Contra o blá blá blá anticlimático
Quanto mais gente trabalhando e se organizando politicamente por transição de verdade, menos risco de enganação política.
Parece que ambientalista é aquele tipo de gente especial que consegue ser uma pedra de sapato pra todo mundo, pra além das ideologias. Economistas falam de desenvolvimento, a gente pergunta: pra quem? Ministro fala de transição energética, a gente pergunta: é justa? ONG fala de incentivar maior oferta de alimentos, a gente pergunta: quem que planta? Quando capitalista aparece com mercado de carbono, a gente conta que é solução falsa. Quando a esquerda institucional diz que vai proteger as florestas, a gente lembra: sem povos indígenas, não vai funcionar.
É por essas e outras que andamos muito sérios, sem humor de risadinha inconveniente em encontro de representantes indígenas e de governo quando surge o tema da exploração de petróleo na Foz do Amazonas. No contexto de emergência climática, de uma queda do céu, estamos cada dia mais como uma figurinha infame da Greta que guardo no Whatsapp: sem clima.
A questão é que quanto mais risco de “acabar o clima” (ou seja, a vida), mais devemos não somente falar disso como também formular estratégias de poder para frear a policrise e reparar nossas condições ecológicas. Não existe crescimento econômico de PIB eterno no horizonte de caos planetário. Não existe empresa estatal forte e empregos seguros nesse contexto. Não existe chance de vida saudável e boa para a maioria da sociedade e seus descendentes. Porém, mesmo quando há reconhecimento da gravidade da situação, há negacionismo sobre o que precisa ser feito - radicalmente - para nos tirar coletivamente dessa enrascada.
É nessas horas que o ecossocialista sai da toca - e o ambientalista ecossocialista é muito mais chato que o ambientalista convencional. O ecossocialista sabe que o problema se encontra na estrutura produtiva e, pra piorar, sabe que é extremamente difícil encontrar o equilíbrio perfeito entre negociar as políticas atuais para “enxugar um pouco o gelo” (impedir que ele derreta todo de uma vez) e criar caminhos organizativos mais fortes para executar uma mudança radical da economia e da vida na Terra. Para mediar as condições atuais, as medidas de curto prazo e os objetivos de longa duração, é por isso que nós falamos muito de transição.
A nossa transição não se resume a uns projetos de infraestrutura ou orçamento de estado para setores específicos. A nossa transição não é um exercício de planejamento de negócios de uma empresa de paineis solares. A nossa transição não normaliza perdas e danos e se pauta em métricas antiquadas para falar de qualidade de vida e desenvolvimento social. A nossa transição bate de frente com o blá blá blá de discursos ambientais bonitinhos numa COP e nos aponta caminhos para sobreviver e contra-atacar as políticas fósseis destrutivas do império e suas petroleiras e mineradoras. A nossa transição nem cabe num programa de governo, mas ela tem que ser de fato elemento base para um programa de sociedade.
É assim que eu vim parar aqui. Me interessei por transição pela primeira vez lá em 2007, mergulhei no mundo das contradições de biocombustíveis, hidrelétricas e farsas de mercado. Briguei com o desenvolvimentismo arcaico quase que negacionista de setores variados da esquerda. Explorei as armadilhas e artimanhas do capitalismo verde. E sigo todos os dias pensando na boniteza do nosso planeta, no valor da nossa gente, e tudo que temos para salvar.
Como mais recentemente decidi focar mais ainda da minha produção escrita neste tema, me sinto contemplada pelas oportunidades que me são dadas para trabalhar com isso em várias línguas. No último ano, encabecei o editorial de um dossiê sobre transições energéticas no trabalho. Há algumas semanas, fizemos o lançamento presencial (com gravação de vídeo que depois postarei aqui e no instagram) e posso dizer que estou muito feliz com o resultado. Tive a oportunidade de juntar perspectivas diversas dentro de um horizonte de transformação radical ecossocial - tudo feito com muito rigor à teoria e aos fatos, num compromisso que elabora também sobre as desigualdades de capacidade e responsabilidade para a transição.
O dossier “Transições energéticas: justas e além” saiu em inglês (pdf e impresso), mas há também artigos em português no site do Alameda, precisamente estes:
I. Descarbonizar não é suficiente
Sabrina Fernandes
IV. A eliminação gradual dos combustívels fósseis é um requisito para um mundo pacífico
Katrin Geyer
VI. Sindicatos pela Democracia Energética e um caminho público para a soberania energética
Lala Peñaranda & Sabrina Fernandes
VII. Reconstrução da Ucrânia: impulsionada pela eliminação do risco do neoliberalismo
Olena Lyubchenko
Júlio Holanda
X. Urbanismo distópico: cidades inteligentes em tempo de catástrofe
Paris Marx
Erahsto Felício e Neto Onirê Sankara
Da minha introdução, queria destacar este trecho:
“As nações e os territórios do Sul Global devem reconhecer que deixar os países do Norte Global assumirem a liderança na transição, especialmente na transição energética, apenas com base em sua responsabilidade histórica pelas emissões, é uma armadilha em si. Afinal de contas, quanto mais rápida for a transição de um país, mais preparado ele estará para os desafios econômicos e ambientais trazidos pelas mudanças climáticas nas próximas décadas. Acreditar que uma transição rápida do Norte Global permite que o Sul Global tenha mais tempo para fazer isso no futuro, buscando garantir sua própria chance de desenvolvimento convencional via combustíveis fósseis, é promover o desenvolvimento e a soberania com prazo de validade. Até lá, o clima terá piorado para todos, mas as condições para mitigação e adaptação no Sul Global serão ainda mais adversas, com o Norte Global tendo se beneficiado da extração e da tecnologia baratas sem qualquer redução em sua pegada energética ou ajuste para a suficiência energética.”
Qualquer relevância para o contexto atual brasileiro em que petróleo segue vendido como sinônimo de soberania, em pleno 2025, num contexto básico e aproximado de 1.5ºC de aumento de temperatura média global e pós-enchentes do Rio Grande do Sul não é coincidência. Tenho a sorte de poder pesquisar e escrever para intervir na realidade. É tudo proposital, e muito, muito sério.
Uns outros textos que gosto dos últimos anos:
Fernandes, Sabrina., Entretien réalisé par Löwy, M. (2024) . Les luttes socio-écologiques en Amérique latine. Actuel Marx, n° 76(2), 89-96. https://doi.org/10.3917/amx.076.0089.
Fernandes, Sabrina. ““Just” Means “Just” Everywhere: How Extractivism Stands in the Way of an Internationalist Paradigm for Just Transitions.” International Journal of Politics, Culture, and Society (2024): 1-19.
Fernandes, Sabrina. Solidariedade é essencial mas a crise climática exige ações enérgicas do estado. The Intercept Brasil, 2024.
— Bringel, Breno and Sabrina Fernandes. “Towards a New Eco-Territorial Internationalism”. In The Geopolitics of Green Colonialism: Global Justice and Ecosocial Transitions. Miriam Lang, Breno Bringel y Mary Ann Manahan (Eds.) Pluto Press, 2024.
Bringel, Breno and Sabrina Fernandes. “Hacia un nuevo internacionalismo ecoterritorial”. In Más allá del colonialismo verde: Justicia Global y Geopolítica de las Transiciones Ecosociales. Miriam Lang, Breno Bringel y Mary Ann Manahan (Eds.) Clacso, 2023.
Fernandes, Sabrina. “Ecossocialismo a partir das margens”. Ecossocialismo brasileiro – avanços e desafios. Arlindo Rodrigues e Suelma Ribeiro Silva (orgs.). Fundação Perseu Abramo, 2023.
Fernandes, Sabrina. Sovereignty and the Polycrisis. The war in Ukraine and the questions of internationalism (Dossier), Alameda Institute, 2023.
Fernandes, Sabrina. “Right-Wing Authoritarianism Against Nature: The Latin American Context”. In Global Authoritarianism: Perspectives and Contestations from the Global South, edited by IRGAC. Bielefeld: Transcript, 2022.
Fernandes, Sabrina. An Ecosocialist Strategy to Win the Future. Rosa-Luxemburg-Stiftung, 2022.
—Hacia el siglo veintidós. Jacobin America Latina, 2022.
—Rumo ao Século 22. Jacobin Brasil, 2022.
M Löwy, G Kallis, S Fernandes, B Akbulut. Por un decrecimiento ecosocialista Mientras tanto, 20 (2022).
Nos próximos meses sairão (de acordo com o planejamento das editoras): análises do contexto ambiental no Lula 3, um debate teórico profundo sobre soberania ecológica, capítulo sobre soberania alimentar e um estudo sobre novas zonas de sacrifício na América Latina. E o livro sobre transição, Sabrina? Vai sair: num misto contraditório entre pressa, o tempo que se leva para escrever com cuidado, pesquisar com atenção, e atender às demandas da vida. Enquanto isso, outros materiais vão segurando o atraso e, espero eu, ajudando um pouquinho na tarefa colossal de segurar o céu.

teu texto relembra que construir a solução é bem mais difícil do que receber ela da boca desconfiada de um engravatado, mas nunca perde a capacidade inspiradora. seguiremos na luta construindo solução juntos. obrigado pelo texto, sabrina!
eu sou completamente viciado na tua escrita. ler o que você escreve me inspira de um jeito que nem sei explicar. obg por nunca desistir da luta!